Inicialmente,
na narrativa mítica não encontramos uma consciência pessoal autônoma. O que
verificamos é uma consciência submetida à massa comunitária, homogênea. Uma
consciência receptiva do senso comum. É uma consciência situada, extrínseca,
desprovida de problematização.
Mas esse momento primeiro e inicial
responde a uma dimensão e a uma necessidade estrutural do ser humano, na medida
em que lhe proporciona a segurança e a identificação comunitária. A partir
dessa realidade, a narrativa mítica alimenta e cultiva a capacidade imaginativa
do ser humano. E, alimentando a imaginação, o ser humano despertará para a
abstração, para a inferência. Aqui se localiza a origem existencial da
Filosofia. Essa dimensão, amadurecimento com base inicial na consciência mítica,
será a responsável pela posterior percepção das contradições, presentes na
narrativa mítica.
A
consciência filosófica nascerá em cada existência à medida da capacidade de
ver, de admirar ou indignar-se.
Essa consciência filosófica, percebendo
contradições e limitações presentes no interior da narrativa mítica, foi
reformulando-as e racionalizando-as, transformando-as numa explicação nova e
diferente. Contudo, não falamos em ruptura, uma vez que suas raízes lá se
encontram. Falamos em passagem para uma nova forma de abordagem e aproximação.
Em suma, buscando traçar um paralelo
entre mito e Filosofia, podemos afirmar, em primeiro lugar, que o mito,
enquanto intuição compreensiva da realidade, narra as coisas como era num
passado imemorial e longínquo. Em contrapartida, a Filosofia se volta aos
fundamentos racionais de as coisas serem como são, na totalidade do tempo. Em
segundo lugar, o mito primitivo narra a origem através de genealogias e
rivalidades ou alianças entre forças divinas e personalizadas, enquanto a
Filosofia explica a produção das realidades por elementos e causas naturais e
impessoais. Em terceiro lugar, o mito traz a ausência da percepção das
contradições, devido à fé e a à confiança depositada na figura do narrador. Em
contrapartida, a Filosofia, deslocando a autoridade pessoal para a razão, busca
uma explicação coerente, racionalmente bem fundamentada, evitando as
contradições.
Texto
extraído de MEIR, Celito. Filosofia: por
uma inteligência da complexidade. Belo Horizonte: PAX Editora e
Distribuidora, 2014, p. 47.